segunda-feira, 8 de abril de 2013

A cigana estava certa

Tudo começou quando a amiga de infância disse que conhecia uma cigana que não errava nunca. Ficou interessada. Foi por causa da cigana que a amiga conseguiu descobrir que o marido tinha um caso e diagnosticou um câncer muito antes dos sintomas. A cigana era tão infalível que costumava ajudar a polícia a encontrar desaparecidos.

– Lembra daquela menina que o namorado enterrou na mala?

Claro que lembrava. Tinha sido o crime mais falado da cidade. Começou a fazer perguntas e a história ficava cada vez mais intrigante. Pensou na confusão que estava a sua vida e decidiu que precisava de uma consulta. A amiga avisou: “É melhor ir logo. Dizem que ela vai desencarnar esse final de semana.”

A palavra “desencarnar” assustou um pouco. Pelo menos teoricamente não acreditava em espíritos. Se bem que agora qualquer ajuda ia bem. A grande dúvida era se deveria ir morar com o namorado em Rondônia. Para ela, fotógrafa de moda, isso significava suicídio profissional. Seu coração doía só de se imaginar de novo fotografando festinhas de 15 anos. Mas será que suportaria ficar em São Paulo sem ele?

Essa era a sua pergunta. No sábado, acordou bem cedo, colocou o endereço no GPS e só então descobriu que o trajeto era bem complicado. A situação piorou bastante depois que ela subiu um morro e o sinal foi embora de vez. Agora estava totalmente perdida, distante da cidade e num território nada amigável. Por sorte, a cigana tão popular que todo mundo sabia onde ficava a casa.

A consulta era por ordem de chegada e já havia bastante gente. Bem que a amiga avisou que sábado era muito cheio, mas pelo preço ela pensou estivesse exagerando. A sala dava para uma outra salinha, onde a cigana atendia. Enquanto procurava um lugar para sentar, a porta da salinha se abriu e uma moça anunciou bem alto.

– Ela quer falar com a Fernanda.

Fernanda era ela. Entrou e, do outro lado da mesa, encontrou uma velhinha sorridente e tão frágil que mal conseguia acreditar que era assim poderosa.

– Você quer falar comigo?

– Eu não. 
   A cigana.

Nem terminou a frase e o tom já havia mudado. A voz, trêmula e difícil de entender, foi substituída por um jeito de falar bem mais ríspido. Os olhos também ficaram bem mais abertos.

– Se impressionou com a menina da mala, não foi?

Ela respondeu, meio sem jeito:

– É uma história marcante, né?
   Acho que foi isso...

– Você veio porque eu te chamei.
   Faz tempo que eu estava esperando.

Não entendeu muito bem o papo, mas decidiu relevar. Foi perguntando coisas sobre a sua vida e a cigana realmente acertava tudo, com nomes e histórias que ninguém mais poderia saber. Mas, se o passado se encaixava perfeitamente, as previsões sobre o futuro deixavam muito a desejar. A cigana disse que Fernanda não deveria se preocupar com o trabalho, pois ganharia dinheiro com as revelações.

– Como assim “revelações”?
   Vou montar um negócio para revelar fotos? 
   Aqui ou em Rondônia?

As respostas eram vagas. “Onde você estiver”. E o namorado, a gente vai ficar junto? “Você nunca mais vai ficar sozinha“. O que eu vou decidir? “Você vai descobrir antes do que você pensa”. Por mais que mudasse as perguntas, a cigana dava sempre as mesmas respostas e insistia que a questão da mudança era pequena perto da transformação que aconteceria dentro dela mesma.

A consulta não durou mais que 30 minutos. Fernanda saiu irritada. Esse papinho de horóscopo não valia tanto dinheiro. Entrou no carro e viu que o GPS ainda não estava pegando. Virou a primeira à esquerda e, para sua surpresa, conseguiu ir embora bem fácil, como se já conhecesse aquelas ruas.

Chegou no apartamento pensativa. A mudança aconteceria logo, mas quando? Estava tão concentrada nesse pensamento que nem percebeu que, quando o mensageiro do vento começou a tocar, todas as janelas estavam fechadas.

Escutou o interfone. “É o síndico, mas hoje ele não vai reclamar que eu estacionei na vaga errada. A mãe dele morreu e o enterro é às quatro.” Atendeu e era exatamente isso.

Estranhou o pressentimento, mas não quis pensar muito. Foi tomar uma ducha e, antes de entrar no banho, lembrou de deixar a porta do apartamento aberta para o namorado. Ele chega pé ante pé e tenta dar um susto, abrindo o box devagarinho, quase sem fazer barulho:

– Avisa para o seu amante que ele esqueceu a porta aberta.

– Esquecidinho você, hein? Um chaveiro daquele tamanho e você deixa a chave de casa no posto de gasolina.

– Quem disse que eu esqueci no posto?

– Não esqueceu?

– Esqueci, mas eu não te contei isso ainda. Deixei o celular lá também.

– Sério?

Ela sai do chuveiro e começa a se enxugar.
Ele chega mais perto e abraça a namorada.

– Você está bem, amor? Sua voz está diferente...

Nesse momento, Fernanda ergue a cabeça, vê seus olhos no espelho e finalmente se dá conta do que está acontecendo.

As revelações não tinham nada a ver com fotografia.

A cigana agora estava dentro dela.

Nunca mais ficaria sozinha.



5 comentários:

  1. patricia pfeilsticker sousa santos10 de abril de 2013 às 20:27

    sempre surpreendendo amiga! adorei!

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    1. Oi querida,
      Que bom que você gostou...
      Estou muito maligna ultimamente...
      Beijão!

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  2. Nossa! Acho que ainda vou ter que reler algumas vezes...

    Desafiante! hehe

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    1. Opa... isso é um mau sinal. O fim não ficou claro?

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    2. Na verdade o fim está bem claro... Mas, tive a impressão de que poderia haver outra mensagem escondida.

      Talvez porque ontem mesmo eu tive a confirmação de passagens para Rondonia. A coincidência me chamou a atenção. Estou indo para lá para realizar um trabalho. Mas, é só uma semana... Acho que não preciso procurar a cigana né? hehe

      A cigana desencarnar e encarnar nela foi interessante. E a ambiguidade da palavra "revelações" foi uma sacada genial.

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