sábado, 20 de março de 2010

Atalho





Saí atrasada na quarta feira e peguei um atalho para ir à faculdade. Foi como entrar num sonho. Margaridas no chão, árvores cor de rosa, claridade e paz. Vi namorados sentados na grama, um caracol e um cocker molhado. Escutei o barulho d´água e descobri que meu maior luxo em Madri é o caminho da escola.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Outro domingo




Hoje a minha rua estava triste,

Calçadas sujas de silêncio e sombra

Na solidão das árvores sem folha

Eu desfiei meu último sorriso.


Vi um pinheiro de natal no lixo

e uma senhora que tocava música

Mais parecia uma boneca russa

que há muito o tempo envelheceu.


De haver sentido assim ameaçada

por seus olhos de dor e pedido

voltei pra casa caminhando em culpa.


Eu nem sei quando fiquei tão amarga

Estou mais dura que a minha calçada

Ando mais triste que a minha rua.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Martha está morta

Imagino Martha escolhendo a roupa, combinando a blusa e o cachecol de linha. Antes de sair, Martha riu para o espelho e pegou a jaqueta. A mãe até chegou a perguntar aonde ia, mas era melhor não dar grandes explicações. Nem mesmo ela sabia quanto tempo ia demorar a conversa, podiam ser 15 minutos ou a noite toda.

Desceu as escadas rápido e teve tempo de segurar a porta para a vizinha de cima, que chegava cheia de sacolas. "Se não tá levando guarda-chuva se prepara", avisou a moça, esbugalhando o olho. Através da imensa porta de vidro lembrou como detestava o inverno. Nem eram seis da tarde e já parecia noite.

Quando viu a moto chegar, atravessou a rua. Deu dois beijos em Rodrigo, reclamou do tempo e foram a um bar ali perto. Estava curiosa para saber qual era o tão misterioso presente. Ele fez todo um teatro para mostrar a surpresa. Quando Martha começou a ficar impaciente, Rodrigo finalmente entregou os incensos do Chile.

Se havia uma hora em que poderiam ter se beijado seria essa, logo que disse que não tinha conseguido parar de pensar nela durante a viagem, mas dessa vez Martha resolveu não complicar mais as coisas. Rodrigo parecia tão interessado que deu medo. Era muito cedo para começar outro namoro e e não teria porquê arriscar uma amizade num momento tão difícil. Meteu os incensos no bolso da jaqueta, disse que estava muito molhada para ir ao cinema e decidiu voltar para casa.

Cruzou a porta de vidro, subiu pelas mesmas escadas e encontrou Miguel na campainha. Cumprimentaram se meio esquisito, como acontece com ex-namorados, e entraram logo. Ele disse que a amava e e que ia mudar. Ela respondeu que não acreditava e preferia continuar afastada até que as coisas se acalmassem. Pediu que ele fosse embora. Miguel abraçou-a com força e tentou beijá-la até que percebeu os incensos escapando do bolso da jaquela preta.

Quem te deu isso?
O Rodrigo.

Martha termina aqui. Miguel deu dois passos até a mesa, pegou o cinzero de ferro e bateu com tanta força que ela nem gritou. O ex namorado limpou o sangue com o cachecol de linha e essa foi a noite em que martha pegou mais chuva. Seu corpo foi jogado num parque na fronteira de Sevilla e até hoje ninguém encontrou.

* O crime aconteceu em 14 de janeiro. Martha tinha 17; Miguel,21. Ele confessou um mês depois e, desde então vem mudando seu depoimento. Primeiro, o corpo estaria no rio, no aterro sanitário e por último nesse parque. Pouco se sabe sobre o que realmente aconteceu.De vez em quando eu janto escutando esse caso na televisão. Martha aparece sempre em fotos de verão, com um colar de buzios. Sua vó, com uma enxada, diz que só descansa quando encontrá-la. Eu rezo para que ela seja encontrada, mas não por um familiar. Depois de quase dois meses, Martha não se parecerá consigo mesma.

sábado, 6 de março de 2010

Sobre a beleza que se esquece


Hoje eu entrei em um castelo do qual eu jamais vou conseguir lembrar. Mesmo que eu veja as fotos, minha cabeça não tem a calma daqueles campos secos, o brilho dos tetos folheados a ouro, a nostalgia das janelas úmidas. Teria que voltar para saber. Vou guardá-lo em mim como uma construção perfeita e uma felicidade inespecífica. Será, na minha memória, um lindo castelo, mas nunca tão lindo quanto ele realmente é. Não tão lindo quanto foi hoje.


***

Eu vejo a beleza como uma experiência. A beleza do novo é a surpresa do deslumbramento, o prazer de tocar o impossível até senti-lo concreto e coerente. É deparar-se com o que nunca foi vivido e sentir o inédito se transformar em lembrança. Mais que na impressão visual, a beleza está na revelação.


E é por isso que as crianças conseguem se admirar com mariposas comuns e os primeiros beijos são bonitos. Não se trata de uma questão de simetria, mas de ponto de vista. Enquanto os adultos veem asas marrons, as crianças se maravilham com a possibilidade de voar. No beijo, conta a emoção de ver a insegurança dando lugar à descoberta e frio na barriga.


* A foto é o teto do castelo Alcázar de Segóvia.



quarta-feira, 3 de março de 2010

Aulas de Roteiro



Quero escrever uma história e, mais que tudo, quero saber como se escreve uma. Já comecei alguns livros que não passaram da página 3. Alguns viraram postagem de blog, uns descansam no meu HD e habitam minha cabeça. A maior parte dos textos que criei foi solenemente deletado por falta de razão para existir.

Inventar uma história só parece fácil. A ideia de que você se senta em frente à tela do computador e as palavras saltam voluntariamente é uma lenda. As palavras saem das minhas mãos como crianças pequenas quando passeiam com o colégio. Há as que saem correndo a ponto de se perderem da professora, as se atrasam demais e por pouco não são atropeladas e as andam no ritmo, com mais ou menos vida.

É difícil compreender a métrica da composição, mas percebo que existe, claro, alguma lógica. Fera se transforma em príncipe e conquista Bela assim como a Anne Hathaway vira a preferida Miranda Priestly em "O diabo Veste Prada" e Júlia Roberts, uma linda mulher. Em toda a novela das oito, a trama principal consiste em um amor impossível e complicado por uma vilã que dedica sua vida a destruir a felicidade do galã e da mocinha. Por mais que seja possível reconhecer que existe padrão, noções sobre o que "funciona" são demasiado vagas para garantir que alguém, além da mãe e da melhor amiga, chegue até a última página.

Uma história precisa ser única, sincera, intensa e delicada. Ela tem que parecer real, por mais mágicos ou inusitados que sejam seus protagonistas.Uma história tem que ter tudo aquilo que se espera de uma história e mais tudo o que não se esperava dela (vide Sexto Sentido). Há que surpreender e corresponder. Os personagens, que de fato nunca existiram, devem sentir o que sentem todas as pessoas. Quem se comove é porque empresta sua vida às linhas que alguém escreveu.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Calle Romero Robledo, 13


Moro numa rua que não sei onde termina. Quando saio, de manhã, tudo ainda é novo e pede a minha atenção. As calçadas úmidas, as grades na janela, uma placa de “Restaurador de muebles y antigüedades.” Cuido para não pisar na caca de perro sempre na calçada. Quando o sinal está verde para pedestres toca um alarme que parece um pio. Espero os passarinhos para atravessar a rua e imagino quem seja o Sr. Romero Robledo.

São só cinco minutos até o metrô. Minha estação fica ao lado “exército del aire”. Acho uma brutalidade combinar “exército” e “ar ” na mesma locução. Nada poderia soar mais poluído. Coletes camuflados e metralhadoras guardam a recepção deste edifício tão charmoso e iluminado que merecia mulheres de blush e salto alto.

Sei que estou no primeiro mundo quando os ônibus passam na hora certa e há lixeiras para recicláveis na frente de todas as portas. Sinto-me em 1960 quando uma amiga acende um cigarro durante o meu almoço e sei que ela não cogita que a fumaça possa incomodar. Ao meu redor, há pelo menos mais dez cigarros queimando em um restaurante pequeno com janelas e portas fechadas.

Passeando pelas papelarias, descobri que aqui é mais comum encontrar cadernos quadriculados. Pilhas e pilhas de cadernos quadriculados. Não consegui aceitar a ideia. Comprei folhas sem linha e tirei as palavras do cativeiro.

Ontem eu achei um emprego. Hoje eu pedi demissão.

Ontem eu achei um emprego. Hoje eu pedi demissão. Vou explicar o motivo para que vocês se saiam melhor do que eu. Desemprego mata a aut...