quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Eu moro do teu lado.

Vi os teus calcanhares na chuva, deslizando fora da sandália, e achei engraçado. Admirei, entretanto, a firmeza do teu andar debaixo d’água, como quem resiste, resignado. Eu, com a camisa molhada sobre a cabeça, já havia deixado a dignidade. Como se não bastasse, falhei em desviar de algumas poças. Meus pés, que antes esperavam por uma noite glamourosa, anseiam simplesmente por meias limpas e a nossa casa. 

Casa. Eu escrevo a palavra e logo desconfio que este seja o motivo que pelo qual tenho andado melancólica ultimamente. É possível que eu sinta uma saudade antecipada desse apartamento que não será mais nosso. Eu não gosto tanto assim dessa cidade, mas eu gosto daqui. Eu amo abrir essa porta, eu amo as flores altas que eu vejo no caminho, eu amo a claridade que chega na sala de manhã enquanto eu faço o café. Tudo aqui me lembra nós. Me agrada pensar que, no nosso caso, a coragem veio antes da certeza e que conseguimos nos divertir com tudo o que não foi perfeito até agora.

Antes de viajar, eu não poderia entender direito o que significava ser estrangeiro. Estrangeiro é alguém que sai de um país, mas não chega no outro. A gente fica na borda, um pé aqui outro lá, querendo acompanhar tudo como alguém de carne e osso, sentindo sempre que a vida nos lembra que esta fantasia digital ainda não é suficiente. Estrangeiro é quem calcula o fuso horário antes de fazer a ligação e depois desiste pelo inconveniente. Não faltam meios de comunicar, o que faltam são assuntos que sirvam como ponte. Quando a gente vem pra fora é que percebe como as nossas conexões são delicadas. E só nós sabemos o nosso medo de perdê-las.

É fato: o meu avião aterrissou, mas às vezes tenho a impressão de partes de nós continuam suspensas. A barreira principal não é a língua, mas o passado em comum que nós não temos. Divido com os brasileiros um patrimônio que não precisa ser explicado. As expressões, os sotaques, as receitas que eu conheço, a vida amorosa dos artistas, os sucessos que tocavam na rádio quando a gente era criança. Carregamos como bandeira essa tendência à felicidade, um carnaval interior que quase ninguém entende.

Eu não poderia imaginar antes de vir, mas o processo de chegar é demorado. Vamos tateando, descobrindo, experimentando, até conseguir encontrar o que seja nosso. Quando eu cheguei, eu te reconheci. Hoje, eu tenho como casa esse lado da cama, a metade direita do armário, os porta-retratos na estante e as gavetas de que me apossei. Casa, pra mim, é a mão que você apoia sobre as minhas costas de madrugada, os lençóis que escolhemos juntos e os planos que nos acompanham.

Olhando pros teus pés na chuva eu me vejo por dentro. Minha história contigo é o país que nós fizemos.

Para nós que estamos no meio do caminho

Minha ideia de Austrália era uma capa de caderno dos anos noventa. Pessoas loiras de pele bronzeada, olhos aquáticos em algum cenário de praia. Imaginei a Austrália pelas conversas que ouvi: na minha cabeça isso era um verão sem fim. 
Fazia um calor abafado em são Paulo quando decidi que eu vinha. Eu tinha pedido demissão e agora passava os dias enfornada no meu apartamento de um quarto trabalhando de freelancer.Aprender inglês foi motivo que me trouxe, ou pelo menos o mais fácil de explicar. Dentro de mim, acordava e dormia comigo uma sensação de agora ou nunca. Eu queria uma emoção, uma estreia, uma aventura. Viver qualquer coisa que valesse a pena ser contada ou que pelo menos não pudesse ser tão facilmente esquecida.
Ninguém jamais vai escrever isso numa carta para a imigração, mas um intercâmbio é uma maneira elegante de dizer: licença, preciso ir. E foi assim, sem muita explicação, que eu me retirei. Vendi toda mobilia cuidadosamente escolhida sem nenhum apego. Distribuí as almofadas entre as amigas do prédio. Deixei uns sapatos num brechó perto de casa. Despachei um computador pra Belo Horizonte e quatro malas pra Florianópolis. Só não cancelei a Net porque não consegui.
Na tentativa de minimizar a despedida, disse“‘até breve“. Contei nos dedos pros meus sobrinhos os meses que eu demoraria pra voltar, abracei meus irmãos, deixei minha mãe incubida de doar as roupas que eu sempre me esqueço.
Cheguei em Sydney, e era só até aí que eu tinha programado. O que veio depois foi surpresa.
Agora já faz mais de um ano e eu acredito que passei tanto tempo quieta porque ainda não sei o que concluir. Queria um final definitivo e vibrante, mas na vida real os capítulos não são assim tão claros. Se eu postasse as fotos dos lugares bonitos que visitei, talvez vocês tivessem a impressão de que está tudo resolvido. Não está. Nesse mundo de comidas fotogênicas, eu queria dividir o provisório, queria dizer eu entendo, eu queria dar um abraço nos que perderam a confiança em si mesmo e repetir, sem nenhuma ciência, que persitir é tão importante quanto deixar. Estamos todos juntos no meio do caminho. O que eu tenho percebido, depois de tanto conflito, é que a vida não entrega o que a gente pede. Mas pode ser que o futuro venha muito mais feliz por causa disso.

Ontem eu achei um emprego. Hoje eu pedi demissão.

Ontem eu achei um emprego. Hoje eu pedi demissão. Vou explicar o motivo para que vocês se saiam melhor do que eu. Desemprego mata a aut...