domingo, 30 de agosto de 2009

O natal da madrugada

Pela fresta da janela semi aberta, passavam o vento e o silêncio das noites de inverno. Alguma luminosidade se dissolvia no escuro do quarto, de modo que viam-se ligeiramente azuis.
- E se eu fosse um instrumento musical, que instrumento eu seria? - Perguntou hipoteticamente, sem nenhum propósito. Aceitaria qualquer resposta. Só queria ver quais seriam os argumentos dele para uma comparação tão absurda e desimportante.
-Uma harpa, respondeu imediatamente. Porque é bonita, suave e tem até essa tua curvinha nas costas, completou, apoiando a mão docemente sobre a coluna da moça deitada de bruços.
Ela escutou a metáfora como quem ouve uma declaração. O amor veio como uma onda calma e devolveu o sentido de todas as coisas. Soube-se infinitamente querida naquele momento e compreendeu que, sem ele, correria o risco de ter uma vida terrivelmente comum. "E eu que esperava que ele dissesse violão" - comentou para si mesma, achando-se burra em sua ingenuidade. Conhecia-o suficiente para saber que ele não era de clichês. Tudo, absolutamente tudo até agora ocorrera de maneira tão particular que a previsão do futuro assustava justo por sua impossibilidade. No instante em que foi imaginada harpa – o mais delicado instrumento que conhecia, porém o último que iria lembrar– não é que pudesse afirmar que o amaria para sempre, mas teve a certeza de que sempre poderia amá-lo de novo.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Sarah

Ainda que desmanchem meu castelo,

e que todo "não" manche o meu vestido,

até quando eu duvido do que é certo,

E se a minha carruagem já tiver partido...

Eu ainda sou uma princesa.

Com meus sonhos, flutuando em mim mesma.

Tecendo a minha renda com retalhos,

procurando algum brilhante na tristeza.

Querendo um final de purpurina

pra essa tarde, pra essa história, pra essa vida.



**Sarah significa princesa. Escrevi para mim.

Que exibida, né? ;)

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Uvas verdes

Estávamos eu e a mosca. Tinha sentado na poltrona da sala de espera do aeroporto de Belo Horizonte havia quase duas horas. Desde então, a mosca me acompanhava. Revezava entre o braço da cadeira e o meu. Tentei espantá-la, mas foi inútil. Mesmo que ela fosse muito menos ágil que um mosquito, eu nunca teria prazer em esmagá-la com a mão. Visto que não conhecia ninguém aqui, a mosca até me distraía.

Enquanto me demorava nos detalhes das asas, um homem se aproximou. Barba por fazer, alto, magro, lindo como qualquer coisa improvisada. Meus olhos esqueceram a mosca, passaram a admirar a paisagem que milagrosamente sentou-se ao meu lado.

-Está ocupado? –perguntou.

- Não, eu estou sozinha – respondi, com um sorriso maior do que devia.

Em frações de segundos já havia me arrependido de ter aberto a boca. O cara me perguntou se podia sentar e eu já adiantei que estava solteira. Tive vontade de morrer atropelada por um avião. Achei que fosse melhor ir embora, mas reconsiderei. Se a conversa fluísse bem, talvez ele nem percebesse que eu estava mesmo tão carente. Ainda que morrendo de vergonha, resolvi ficar onde estava. Disfarcei meu nervosismo olhando a mosca.

-Esses olhões são incríveis... ele comentou, com a cabeça virada na horizontal.

- São mesmo...

-Você sabia que as moscas podem enxergar até quatro mil ângulos ao mesmo tempo?

-Sério? – questionei com interesse vago. Na verdade estava muito ocupada admirando o angulo horizontal da cabeça dele, que deixava o cabelo cair na testa.

- É porque elas tem milhares de olhos... disse fascinado.

- Você é biólogo?

-Sou.

- Que legal. Sempre achei legal conhecer bem a natureza.

-É uma profissão maravilhosa, mas eu sou suspeito para falar.

Constatei que estava mesmo desesperada. Em sete frases eu já imaginava nós dois levando nossos filhos para o Zoológico. Já escolhia o nome do nosso labradorzinho quando o telefone dele tocou.

-Alô, Alô, não estou escutando... alô... – repetia.

-Você quer tentar do meu? – ofereci, prestativa.

-O seu também é rádio?

-É. Pode usar à vontade...

-Muito obrigada. Estou mesmo preocupado. É que a minha esposa é modelo. Ela viajou para França ontem e até agora não deu notícia. Vi no jornal que está chovendo muito. Ela deve ter acabado de chegar – explicou bem explicado.

Sorri amarelo. Levantei quando escutei o “oi amor”. Deixei o telefone com ele e fui até o bar. Pedi vodka e gelo. Duas. Uma pra mim, outra pra mosca.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Ainda

Comprei um porta retrato para dar a uma amiga de Fortaleza. Ainda não mandei.
Gravei depoimentos de gente de 13 países para fazer um mini documentário. Ainda não editei.
Na minha estante, acumulam-se os livros que eu ainda não li.
É assim que eu conto as coisas para mim, com um ainda embutido em cada frase. Quero ter a impressão de que é questão de tempo. O ainda suaviza o não, me permite pensar que a negação é temporária. O ainda exprime a possibilidade de mudar a sentença. Essa chance de transformação é o meu aval para adiar mais e mais.
Mas iminência do movimento é uma ilusão sintática.Não há nenhuma garantia de realização. Bruna não recebeu o presente, eu não terminei o filme e comprar livros não me faz uma grande leitora. É melhor encarar a verdade: o ainda só existe na frase e na minha cabeça. Na prática, ou é sim, ou é não.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O cabelo das mulheres

Mulher ama cabelo.

Mulher folheia revista só para olhar o cabelo de outras mulheres.
Mulher se encanta com os cachos da modelo da propaganda de tinta.
Mulher comenta o cabelo da amiga.
E fica louca quando passa em frente a uma loja de perucas.

Mulher entende a diferença entre passar e botar silicone,
Mulher conhece várias maneiras de fazer luzes.
Mulher sabe que um penteado pode salvar um vestido.
E que não há beleza que sobreviva às trancinhas de Porto Seguro.

O mexer dos cabelos fala.
Passa-se a mão quando a conversa é boa.
Enrola-se com o indicador quando está tudo chato.
Prende-se quando se quer parecer comportada.

Mais que um fio de queratina,
O cabelo determina o bem-estar feminino.
Não conheço quem não odeie cachinho de cabelo novo,
franja arrepiada e pingo de chuva.
Todas amamos uma escova bem feita.

Cabelos traduzem desejo de mudança
As loiras fazem mechas escuras;
As morenas, reflexo;
As lisas, enrolam e as enroladas... bem, agora que inventaram a escova progressiva não existem mais.

É por todos esses significados que eu me irrito tanto com cabeleireiros
Eles têm o dom de fazer o que a gente não pediu.
Se a gente diz "branco" eles fazem "dourado",
Se a gente fala "escorrido", eles deixam "natural"
Se a gente implora "só as pontinhas", eles entendem "no ombro".

Dá vontade de morrer de ódio, de pular da cadeira, de chorar
Mas a gente se controla, paga e ainda agradece.
Deixa.
Eles nunca entenderiam a complexidade do que está na nossa cabeça.



sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Very Old School

Que academia Brasileira de Letras... Imortais mesmo são os atores da Globo. Entra novela, sai novela, estão sempre com a mesma idade. Por quanto tempo mais eu terei que que ligar a televisão e encontrar astros como Antônio Fagundes (o poderoso), Victor Fasano (o sofisticado), Tony Ramos (o bom partido) e Humberto Martins (o pegador)?
Isso sem falar do Edson Celullari, que não consegue mais franzir a testa, e do Tarcísio Meira ,73 anos, que a cada temporada fica mais irresistível.
Eu juro que eu tenho medo do horário nobre...

PS: Não conseguia lembrar o nome do Tony Ramos. Fui para o Google, digitei "ator globo peludo". Acreditam que ele não apareceu?


terça-feira, 11 de agosto de 2009

Feitiço

Minha casa já foi um engenho de farinha. Antigamente, o lugar onde estou agora era habitado por bois e descendentes de açorianos que vieram tentar a sorte no Brasil. Não sei se morreu algum escravo por aqui. De noite, as portas de madeira estralam sozinhas. Ruídos estranhos percorrem a casa e eu prefiro nao imaginar o que pode ter acontecido aqui na época em que isso era apenas lagoa e escuridão. Ou melhor, era a lagoa, a escuridão e a magia de que tanto falam.

A magia da Lagoa da Conceição tem menos a ver com encanto e mais com feitiço, bruxaria. Quando eu era menor, era bem comum encontrar "trabalhos" nas esquinas. Galinhas mortas, galhos de árvores, velas mil. Até hoje, sempre que escuto o barulho do vento penso que pode ter sobrado alguma bruxa por aqui. Talvez alguma bruxa morta que nao quis ir embora...

Antes de existirem shoppings, plástico e congestionamento, a Lagoa era um lugar calmo e sua economia era basicamente a farinha de mandioca. Toda a mandioca colhida aqui era transportada em balaios. Esses balaios eram feitos de cipós. Enquanto as mulheres se encarregavam de trançar a cesta, cabia aos homens recolhê-los da natureza. Uma vez por semana, subiam o Morro em busca de cipós mais resistentes. Um dia, um grupo se deparou com um cipó perfeito, grosso como uma corda, mas já estavam tão exaustos que decidiram poupá-lo.Deixaram as ferramentas ali mesmo e voltaram para suas casas.

Na semana seguinte, quando retornaram, encontraram seus machados todos pendurados no alto das árvores. Estranharam. Pensaram que talvez fosse obra de algum macaco arteiro."Será?" Acharam muito esquisito.Largaram as ferramentas no mesmo lugar e resolveram esperar para ver o que acontecia. Dessa vez, um homem ficou para fazer a vigília.

Voltou para casa apavorado. Chegou correndo, pálido, suado. "Uma bruxa" , "Uma bruxa", era só o que conseguia dizer. Depois de alguns minutos, já mais calmo, ele contou que  assim que escureceu ele começou a ouvir ruídos, mas pensou que fosse algum bicho. Adormeceu. De repente, uma gargalhada alta o fez despertar. Quando olhou para cima, uma bruxa se balançava no cipó. Saiu em disparada em direção à vila.

Todos os outros ouviram a história aliviados por não terem cortado o balanço da bruxa. Todos menos um. Seu Rosário, pulso forte e poucas palavras, não acreditou no vizinho. Na mesma madrugada, foi até o lugar onde haviam deixado as ferramenta. Não encontrou absolutamente nada fora do lugar. Nenhuma bruxa. O cipó continuava lá, intacto.

Não pensou duas vezes. "Vou arrancar isso aqui". Pegou o machado do mato e logo no primeiro golpe o cipó se tranformou em uma enorme enguia. No momento em que o metal da lâmina encostou no peixe elétrico, o choque foi tão grande que ele caiu desmaiado. Em poucos segundos, uma revoada de corujas veio bicar seus olhos. Depois, elas se transformaram em três urubus e comeram toda a carne do homem.

 Quando não havia mais nada, os urubus viraram bruxas de novo. Primeiro as patas, depois o corpo e a cabeça. Por fim, as asas viraram longos braços magros, com dedos que mais pareciam afiados galhos secos. Ao saírem, as bruxas levaram as ferramentas para bem longe, mas fizeram questão de deixar os ossos ali, como um recado.

A vila nunca chegou a ter certeza do que aconteceu naquela noite, mas o mistério foi suficiente para comprovar a suspeita. Toda a desgraça vinha da combinação de três fatores: era a lagoa, a escuridao e a mesma magia de sempre. 

* Desculpa pela falta de acentos: ainda não me acostumei com o teclado que estou usando agora.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

100

Perco um tempão no Google analytics. Para quem não conhece, é uma ferramenta do Google que disponibiliza todo tipo de informação sobre os visitantes o blog (número de acessos, quantas páginas olharam, que textos são mais lidos). Não entendo metade dos gráficos, mesmo assim fico ali, comemorando toda vez que vejo que mais alguém entrou. O estranho é que eu nunca consigo prever o que as pessoas vão gostar. Às vezes escrevo empolgadíssima algo que pensei a semana inteira e ninguém responde. Olho as estatísticas: 16 acessos. Penso "ah, legal". Clico em "tempo médio na página"= menos de 10 segundos. Entro em depressão... É um zero...

Por outro lado, tem vezes que eu já escrevo sabendo que provavelmente ninguém vai se interessar e, de fato, acerto. Nenhum comentário, quatro acessos da mesma máquina. Pode ter sido alguma amiga muito fiel, ou eu mesma, usando computador do meu pai. Acontece. É outro zero.

Não tem problema. Tenho também os meus dias de sorte, quando escrevo o que eu penso e sei que tem gente que gosta, que lê até o fim, que comenta quando me encontra, diz que já se sentiu assim. Um ponto para mim. Esse um vai na frente dos outros zeros e eu vejo que tudo continua valendo a pena.

domingo, 2 de agosto de 2009

Falta

Aconteceu há algum tempo, no interior do Rio Grande do Sul.

Acordou. Olhou-se. Desceu. Pão e queijo. Enquanto esperava a luz da sanduicheira acender, folheou o jornal que encontrou sobre a mesa. Não que que tivesse o hábito de ler os obtuários, mas um sobrenome conhecido chamou a atenção. A nota informava que Ana Cristina Siqueira dos Santos, 42 anos, descansava em paz depois de oito meses lutando contra o câncer. "Não, não. Não pode ser."

Esqueceu a sanduicheira ligada e foi acordar o marido.
-Amor, tu te lembras daquela minha amiga, morena, baixinha, que era minha vizinha quando a gente se conheceu?
-Uma que ria meio alto?
-Isso.
-Que que tem?
-Eu acho que ela morreu.
-Morreu?
-O nome está no jornal. "Ana Cristina Siqueira dos Santos". Foi câncer, parece. Tão nova...
- Que pena. Ela tinha filhos?
-Não sei. Faz uns quinze anos que a gente não se vê... A última vez foi no casamento da Marininha, irmã do Nelson, lembra?
-Lembro. Faz 15 anos já?
-Faz. Faz 15 anos. A gente ficou sem se falar 15 anos. E agora ela morreu. Minha amiguinha da escola, depois companheira dos cinemas, das festinhas. A melhor amiga que eu já tive e eu fiquei todos esses anos sem ligar no natal... Eu nem tenho o telefone dela....
-Calma amor, não fica assim. Vem aqui...calma, Clara... calma. Por que você não liga para a Marininha e descobre onde vai ser o velório?
-É. Eu vou no velório. E vou fazer a coroa de flores mais linda que alguém já viu. Passei a vida fazendo coroa pros morto dos outros...
-Isso amor. Não chora. Faz uma coroa bem linda e a gente leva lá pra ela. Hoje é terça, a gente fecha a floricultura, não tem problema.

Lavou o rosto. Desceu. A floricultura ficava no térreo. Abriu a geladeira. Pegou só o que estivesse lindo e novo. "Eu vou fazer bem vermelho, que é como ela gostava". Juntou as rosas, tirou os espinhos e foi montando tudo com pesar e saudade. Lembrou das vezes que saíram escondidas, de quando brigaram porque gostavam do mesmo menino, lembrou de como ela achava escandalosa aquela risada e não se conformou em perceber a falta só agora.
"Daqui a pouco a Aninha vai apodrecer como essas rosas", pensou ao jogar fora a caixa de flores velhas.

Quando a coroa ficou pronta, ligou para Marininha. Marina tinha se mudado para São Paulo havia sete anos e a última notícia que tinha era que a Ana Cristina estava morando em São Francisco. São Francisco ficava a uma hora e meia dali. O telefone ela não tinha.

Entraram na camionete e foram mesmo assim. Fizeram uma viagem silenciosa. Clara não sabia o que ia encontrar. O último enterro a que tinha ido tinha sido o da sua avó, mas era bem diferente. Morreu em casa, dormindo, velhinha. "Tomara que ela não tenha filho pequeno", pensava enquanto se distraia com os barulhos dos pedras da estrada.

Chegaram. Os números de metal pendurados no portão de madeira verde indicavam que estavam na casa certa. Buzinaram. Ninguém. Buzinaram de novo. Um homem veio atendê-los.
-É aqui que mora a Ana Cristina?
-Sim.
-Nós viemos trazer umas flores...
Antes que terminasse de explicar, Ana aparece na porta. Clara saiu correndo e abraçou a amiga. Um abraço forte, como se quisesse se certificar de que estava mesmo ali. Clara chorou de alívio, chorou pelos quinze anos que passaram longe, chorou de agradecida por poder mais uma vez abraçar a amiga quente, gorda, viva. "Eu achei que tu tivesse morrido, e eu te amo tanto, tanto...", soluçou. Ao entender, os olhos de Ana molharam também. Viu a coroa no carro, deu graças a Deus por estar ali e por ter a certeza de que era tão querida.

De fato, o nome era o mesmo, mas era outra pessoa. Refeita, Clara desculpou-se pelo incômodo." Eu teria feito o mesmo." Era verdade.

Ana insistiu que eles ficassem para um café. Sentaram, conversaram, riram como antes. Aquela tarde de terça, fadada a ser triste e sombria, milagrosamente se transformara na melhor tarde de terça dos últimos anos só porque as duas existiam. Trocaram telefones e prometeram se falar mais.

Clara voltou para casa contente, como se ela mesma tivesse nascido de novo. Na manhã seguinte e em todas as outras, sempre que abre a floricultura, ela se sente premiada por "só fazer coroa pros morto dos outros..."

Ontem eu achei um emprego. Hoje eu pedi demissão.

Ontem eu achei um emprego. Hoje eu pedi demissão. Vou explicar o motivo para que vocês se saiam melhor do que eu. Desemprego mata a aut...