quarta-feira, 29 de abril de 2009

25 anos, para mim

Hoje tenho consciência de que já fiz algumas coisas pela última vez.

Ao olhar para trás, encontro lembranças ótimas de situações que eu

nunca mais gostaria de viver de novo. Todo dia que passa me modifica

um pouco, de modo que algumas coisas que antes eu amava tanto,

agora já não caem bem em mim.


TROTE DE FACULDADE

Recordo perfeitamente eu enfarinhada, com batom na testa,

pedindo dinheiro no semáforo. Por mais suja e

fedorenta que estivesse, na época, valia a pena. Achava até

engraçado passar vergonha para me enturmar.

Quando mudei de curso, fugi do trote. Outro, só quando

eu reencarnar...


NIGHTS

Houve um tempo em que eu vivia para elas. Provava o armário todo,

me arrumava, fazia esquenta. Dançava, bebia, ria. Voltava pra casa

destruída e contente.

Passou. As filas, que nunca eram um problema, agora

são só o que eu enxergo. Fila para entrar, para comprar, para o

banheiro, para pagar, para sair. Perdi a paciência de esperar

e sinto que meus ouvidos já não são tão tolerantes. Fico agoniada

de gritar para conversar e de cumprimentar gente

chata. Morro de nojo sempre que um cara suado esbarra em mim.


MELODRAMA

Quando meu primeiro namoro terminou, foi devastador.

Passei duas semanas chorando e dormindo, perdi 8 kg, me humilhei

até passar do limite. Claro que eu ainda fico mal toda vez que brigo

com quem eu gosto, mas a diferença é que agora sei que

vou sobreviver. Acho que sofro com mais dignidade.


À medida que os anos passam, ficam claros os ciclos: primeiro eram

as festas americanas, depois as de quinze, os shows, as formaturas

e agora são os casamentos. Antes meu pai me buscava, aos 20 achava o

máximo ir dirigindo, hoje dou graças a Deus quando pego carona por

preguiça de estacionar.

Já quis lipo, já quis mega hair, atualmente quero sobrinhos.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Mensagens Indesejadas

Depois de comer uma pizza, os dois em casa como sempre,

ele resolveu olhar os e-mails no computador. Nome, senha,

enter e a ampulheta apareceu. Tentou minimizar a janela,

mas não tinha jeito.

- Meu, não consigo entrar...

- Ai amor, desencana, esse laptop quando trava não tem jeito.

Só desligando...

Roberto até cogitou a hipótese, mas estava sem muita paciência para

isso. Não estava disposto a perder seus últimos dez minutos de paz

esperando atualizar o anti-virus. Precisava chegar no trabalho a uma

e meia e era melhor andar rápido.

- Não dá nada, babe. Vou nessa, disse enquanto tomava o último gole

de coca .

- Me liga quando sair...

Beto cruzou a porta. Amanda voltou e sentou em frente à tela.

Segurou o mouse um pouco sem saco. “Segunda-feira eu levo essa

porcaria pra formatar...”. Pensava como tinha sido enfática na

palavra porcaria quando foi surpreendida pelo Olá Roberto!

no cabeçalho do gmail.

Se em algum momento ela tivesse planejado isso, nunca teria sido

tão fácil. De repente, sem nenhum esforço, o destino a apresentara

ao poço dos segredos dele. Se fosse uma gaveta com cartas reais,

talvez ela nunca tivesse coragem de terminar de girar a chave, ou

só girasse se soubesse que não tinha ninguém em casa.

Mas abrir gavetas virtuais não deixa testemunhas.

Entro? Não entro. Entro? Não entro... Entro..É, só um pouquinho...

Pra dar uma checada... se não tiver nada eu saio logo... Aos poucos,

Amanda foi se convencendo de que invadir a caixa de entrada do

namorado não era uma falta grave, era apenas uma confirmação de

fidelidade, extremamente necessária.

Conferiu um por um. Promoção da Saraiva, cartões Vox Cards

com os vírus de sempre, vagas de estágio da universidade.Procurou

nas mensagens enviadas e se sentiu um pouco culpada: encontrou

vários e-mails que ele escreveu para ela na última viagem.

Decidiu fazer a pesquisa. Procurou a palavra “amor”, que é como ele

se despede por escrito. Encontrou exatamente 102 ocorrências.

Palestra sobre amor na logosofia. “Olha que amor”, título do e-mail

da tia com as fotos do cachorro recém nascido. Quando estava indo

para a página 4 seus olhos tropeçaram em um sobrenome vagamente

conhecido.

“O amor não tem fronteiras”. Suspeito.

Clicou. Claro que conhecia. Era um spam enviado pela ex dele.

O texto tinha alguma coisa de bonito e uma coleção de clichês. Fora

mandado um ano atrás, quando Roberto e Amanda já namoravam.

Amanda ficou com isso na cabeça. Não encontrou detalhes sórdidos

de uma noite de sexo, não encontrou comentários comprometedores

dos amigos sobre as vezes em que ele saiu sozinho, encontrou apenas

um spam da ex.

Mesmo assim, odiou imaginar Roberto abrindo aquele e-mail como quem

espera uma declaração. Odiou imaginá-lo triste ao perceber que havia

mais umas quinze pessoas na lista de remetentes. E odiou mais ainda

pensar que ele só não deletou o spam porque era a ex quem tinha

mandado. Ao contrário, guardou-o carinhosamente numa

pasta chamada “Fê”.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Apesar dos negativos

Fotos contam historias, fotos falam por si. Recentes ou envelhecidas,

só quem viveu sabe da mágica peculiar contida em cada um desses

retângulos de papel. Combustível da saudade, freiam o tempo e têm

o poder de trazer de volta um rua que não este mais, a infância que o

tempo soprou, o abraço de alguém que se foi.Fotos são um certificado

de vida, a prova de que alguém amou. Amor de pai, de amigo, de irmão,

nenhum outro tipo de amor é tão revelado quanto o amor amor.

Mas logo que o romance termina os beijos acabam amassados no lixeiro

do quarto. A justificativa é sempre a mesma: é preciso esquecer.

Esquecer um grande amor é difícil e demorado. Por mais que se evite

pensar no fim, uma musica toca e o processo de amnésia seletiva vai por

lágrima abaixo. Uma vez, outra vez, outra vez, até que um dia a musica

vem e o choro não. Pronto. O riso volta pra casa, o coração fica leve.

A gente fala e acredita que esqueceu. Não é bem por ai.


O esquecimento não passa de uma maneira pratica que a cabeça

inventou para acabar com o problema da falta de espaço, rudimentar

como arrumar uma gaveta de escrivaninha.Do mesmo jeito que as

caneta sem carga,somem dos pensamentos o telefone do dentista e

os números do cpf, num processo de autoclean que não apaga a mão,

o beijo, o cheiro de um ex.


Não é por acaso que as paixões resistem a essa borracha inconsciente:

mais que deletados, os amores precisam ser aprendidos. Limitar o

ciúme, administrar a saudade, valorizar os amigos e os conselhos

que eles dão. Só o repensar dos nossos erros e acertos pode

aumentar as chances num próximo affair. Para quem se resigna

a remoer mágoas, a novela tem sempre o mesmo final infeliz.


Esquecer um grande amor é arrancar o melhor do passado e

abrir as portas para um novo fracasso. Se a tristeza é inevitável

cabe a cada um decidir quão longa, intensa e reveladora ela será.

Só não sofre com a separação quem nunca esteve perto, quem nunca

esbarrou na felicidade real de gostar de alguém. Pense nos finais de

semana, nas mensagens de boa noite no celular, e se ainda houver

alguma dúvida de que relembrar vale a pena basta pegar as fotos e

ouvir o que elas têm a dizer.

*** Este texto é bem antigo também. Estou meio ocupada essa semana
corrigindo os textos da Mundo Equestre e um livro sobre pelagens de
cavalo.

domingo, 19 de abril de 2009

Colégio interno

***Dentro de mim, métodos antigos para "ensinar a lição" ***

Minha raiva me enche de razão. Toda vez que me sinto

injustiçada é como se eu recebesse uma autorização para

ser cruel. Tenho vontade de ferir até que a outra pessoa

se arrependa, até que ela perceba o tamanho do erro.

Parece didático que cada pisada na bola mereça uma punição.

O castigo deve ser ruim o suficiente para que garantir que

aquilo nunca mais se repita. A ofensa justifica a minha

vontade de vingança.


Mas isso é só num segundo estágio. Primeiro, a raiva me

rouba as palavras. Sem qualquer possibilidade de articular

meus pensamentos, eu choro. Demoro a acreditar que está

mesmo acontecendo. Queria ser dessas que quebram coisas

na parede, mas a agressividade não faz parte do meu instinto.

Choro até cansar. Depois, ai de quem estiver por perto.


Sou sincera muito além do que a educação permite.

Enfio a unha em cada defeito alheio, despejo tudo o que me

incomoda de uma vez só. Distorço as situações a meu favor e ,

claro, não saio impune. Cada acusação é rebatida na mesma

medida. A discussão engrossa. Saio despedaçada e, despedaçada,

eu me fecho.


Remôo todas as cenas incessantemente e sinto que o amor

vai secando de mim. Azedo por inteiro. Chego a pensar que não

vai me fazer falta, mas no fundo sei que me engano. Porque raiva

não é rancor. Raiva passa. E quando vai embora deixa um rombo

enorme, um buraco que ajudei a cavar.


Na esperança de provocar arrependimento, eu mesma

digo coisas de que me arrependo e faço coisas das quais não me

orgulho. Confundo justiça com equilíbrio: dou o troco, magoo igual.

Confortável reclamar de impaciência e intolerância quando todos

os defeitos estão do outro lado. Às vezes, me falta espelho; às vezes

me falta gratidão...


*** Em Santa Catarina, a raiva matou mais que o tráfico no primeiro
semestre de 2009. Os crimes passionais somados aos assassinatos
por desavenças tiraram a vida de 75 pessoas. As drogas levaram 45.
(dados da Secretaria de Segurança Pública)

Amores Express

A pizza vem congelada, a roupa lava sozinha, o Mc donald´s

entrega em casa, e o filme não precisa mais rebobinar.

Ninguém abre a Barsa para fazer um trabalho, cada um

tem seu celular. De uns tempos para cá, ficou tudo tão

cômodo que a gente até se esqueceu que nem sempre

foi assim.


A tecnologia nos deu um mundo novo: mais rápido, mais

fácil e, antes de mais nada, passageiro. O hotmail rasga

automaticamente as minhas cartas; as fotos somem sempre

que o computador estraga; todo mês, surgem milhares de

modelos de telefone. Estranho? Claro que não. Já estamos tão

acostumados que mal percebemos a insolidez e

instantaneidade das coisas.


E não é à toa. Nós vestimos assim, comemos assim, e o mais

triste: nossos relacionamentos também são assim.

A minha geração inventou o ficar e admite tranquilamente

o sexo sem compromisso. Diferente da minha mãe, eu não

preciso namorar para beijar na boca, nem casar para deixar

de ser virgem
e se aos 17 eu me sentia em vantagem, hoje

eu começo a apreciar aquela época.


Para onde foram as promessas, os planos, as declarações? O que

aconteceu com a intimidade, o respeito e a confiança? Será que

ninguém mais acredita na felicidade calma das quartas-feiras chuvosas,

da alegria constante de se querer quem se tem?


A verdade é que eu cansei dessas competições infames do

“quem demora mais para mandar mensagem”, chega do teatro infantil do

“vou fingir que não vi”. O amor é um jogo esquisito, em que

se ganha quando dá empate. Não quero sair por cima,

muito menos sair por baixo. Quero sair ao lado, e de

mãozinha se for possível.



O consumismo nos induz a um estado de insatisfação permanente,

que aplaude o descartável e abomina tudo que for para sempre.

Talvez seja por isso que a idéia de amar assuste tanto. A concepção

de um sentimento duradouro e complicado contraria os valores vigentes

tornando-nos confusos e vulneráveis. É fácil conquistar

alguém por uma noite, é fácil ser atraído por um decote, difícil é querer

estar junto o tempo todo, difícil é morrer de ciúme...



Eu posso parecer atrasada ou até meio cafona. Simplesmente

não tenho outra opção. Enquanto a internet não disponibiliza

uma versão melhor, eu fico com esse meu coração de sempre,

que já não acredita em romances express, nem se contenta

com amostras grátis de amor.





quinta-feira, 16 de abril de 2009

Qual é o cheiro do céu?

Tente imaginar uma cor que ainda não existe.

Uma nova forma geométrica.

Uma textura inédita,

Um gosto que você nunca provou.

Dizem que a mente não tem fronteiras,

A minha tem. E a sua?

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Beleza fabricada

Esse vídeo faz parte da campanha da Dove.
Não é milagre. É photoshop.

domingo, 12 de abril de 2009

Fargo


Quando me perguntavam se eu gostei de Fargo, eu dizia

que o filme realmente merecia o Oscar.

Se me perguntavem sobre o que era a história, eu respondia

convicta: "sobre amigos que encontram uma mala de dinheiro

num avião e acabam matando um monte de gente".

E foi assim durante muitos anos. Não sei para quantas

pessoas eu já indiquei o filme, mas aposto que todas elas

devem ter me odiado, ou pelo menos me achado muito estranha.

Ontem eu descobri que eu nunca tinha visto Fargo. Eu me confundi.

Fargo é sobre um homem que simula o sequestro dá mulher.

Não tem mala nenhuma. Nem avião. Eu vi outro filme

achando que era Fargo.

E o pior é que eu tinha certeza absoluta.

sábado, 11 de abril de 2009

Blusas velhas

Todos os anos eu faço a mesma promessa: "Vou dar todas as roupas

que não uso". Faço uma limpa no armário, separo um monte de coisas,

mas nunca consigo cumprir meu compromisso por dois tipos de roupa:

as gastas que eu amo e as que "um dia eu vou usar".

O primeiro grupo é fácil de reconhecer: blusas de malha cheias de

bolinha, calças jeans finas de tanto ir para a máquina, shorts que

nunca vão voltar a ser brancos. Roupas que me lembram tanta coisa

boa que ficar sem elas seria como rasgar uma foto, ou apagar o

telefone de alguém que eu gosto.

O segundo grupo são roupas que eu acho lindas e, que por algum

motivo, não ficam bem. Alças que não aceitam sutiã, barriga de

fora, coisas que comprei meio pequenas, achando que eu ia

emagrecer. Antes de uma festa, eu insisto em prová-las,

mas antes de vestir eu já sei que vou acabar escolhendo

outra opção. Guardo pensando que o dia delas vai chegar.

O da minha blusa azul chegou. Depois de três anos no

guarda-roupa estreei-a ontem a noite. Mas fiquei com

uma dúvida:

Uma blusa de 2006 que nunca foi lavada é nova ou velha?

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Por que não "anuais"?


Agora que está na moda falar das mudanças na Língua Portuguesa,

gostaria de propor uma alteração.

Quero eliminar o significado de “relativo a ano” da palavra “anais”.

Entendo que o duplo sentido pode causar constrangimentos

desnecessários.

Nunca me sinto confortável a pronunciar "anais" em voz alta

porque é inevitável que não me passe nada engraçado pela cabeça.

Ás vezes, numa reunião bem séria, alguém que nunca falaria

“bunda” enche a boca para dizer que “Consta nos ANAIS da

Academia Brasileira de Letras...”

Escuto sem rir porque sei que está certo, mas será que não é

um erro usar a mesma palavra para coisas tão diferentes?

Ânus e ano não têm absolutamente nada a ver.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Segredos publicados

Hoje eu fui ao Presídio Feminino de Florianópolis. Tinha que entregar

o jornal com a reportagem que fiz sobre as mulheres de lá. Era dia de

visita e a fila estava grande. Vi possíveis namorados, irmãs, mães.

Escutei conversas que não eram minhas, uma perguntava a diferença

entre sentença e julgamento, outro comentava que vinha toda

semana há um ano e três meses.

Enquanto aguardava que a Administração me abrisse o portão

para que pudesse deixar os exemplares, reli a lista dos itens

permitidos nas visitas íntimas (uma toalha de banho, um

maço de cigarro e uma barra de chocolate) e a regulamentação

sobre a roupa das visitantes (saia sem forro, calças capri

e nada de jaquetas).

Um homem baixinho de camisa vermelha veio perguntar

o que eu queria. Expliquei o propósito da minha visita.

Deixei os seis jornais lá.

Entrei no carro com medo. Tinha que a certeza que

reportagem seria passada de mão em mão.

Será que eu fui justa?

Eu espremi a intimidade daquelas mulheres em não mais

que quinze parágrafos. Falei sobre suas infâncias doídas,

sobre suas angústias e expectativas.

Será que era isso mesmo?

Será que eu fui sensível o suficiente?

No Jornalismo, dizem que a gente deve ser objetivo.

Simples assim. O exemplo dado é " Em vez de dizer

que o homem é alto, digam que ele tem um 1,80 m. "

Realmente, o conselho é ótimo para distâncias,

pesos e alturas, mas falta que me deem a escala

da frustração, do cansaço, do tédio.

Falta também que me provem que ser

objetivo é ser honesto.

Eu não inventei nenhum dos diálogos, mas será que

escolhi os certos?

Não sei onde vão dormir os jornais que eu deixei hoje

no presídio.

Não sei como vão dormir as moças que entrevistei.

Eu vou dormir pensando na responsabilidade que é contar

a história de alguém.


***

Conversei com três presidiárias. A que pensava que sairia em março ainda está lá. A Ana Paula, de 19 anos, já saiu e já voltou. Fiquei contente pela Suzi, que teve o bebê e voltou para casa.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Decepções no Zoológico de Pomerode

Elefantes:


Um elefante e uma elefoa dançando. O balanço maternal da fêmea,

o passo tímido do macho. Tão imensos numa cerquinha daquelas.

O que era para ser uma piscina parece uma poça de concreto.

Nem de longe lembra o lugar em que eles deveriam estar.

Um elefante que não migra, dança.



Leão:


O leão é um gato com jeito de cachorro.

Se coça como um cão, rola no chão, mas tem os olhos

precisos de um felino. Um leão magro é só meio leão.


Tigre:

Demarcar território já não tem o mesmo significado.

O território já está demarcado. São três

cercas de arame de quatro metros de altura.

As pessoas encostam na grade e gritam, mas o tigre já está cansado.

Com o passo lento, chega perto do muro transparente , pára, volta.

Não há perigo. Nem novidade. É só incomodo de sempre.

domingo, 5 de abril de 2009

O glorioso fim do cavalo invisível

Um cavalo morreu atropelado na Beira Mar. Ele e mais quatro

fugiram do pasto onde ficavam, ao lado do Hospital Infantil e

foram para a grama ao lado da casa do governador. O cavalo

pertencia a um catador de papel. Fiquei comovida.


O glorioso fim do cavalo invisível

O pasto onde dormiam os cavalos estava longe de ser

um lugar tranquilo. O entra e sai das ambulâncias, o barulho das sirenes.

Ao lado do Hospital Infantil, as noites nunca tinham sido boas,

mas pareciam melhores quando comparadas aos dias.


A rotina os apresentara cedo à estrada, ao peso e ao chicote.

A aspereza do dia-a-dia os fortalecera. Apesar do trote frouxo

e do couro feito veludo velho, suportavam

diariamente o calor do asfalto, a pressão da sela, o pavor do

trânsito e o desconforto dos arreios.


Com a submissão própria de um cavalo, simplesmente aceitavam.

Nunca tinham tido um único plano de liberdade até perceberem

que não precisavam de um. A cerca não existia.


Impulsionados pela fome, desceram pelo trajeto de sempre,

sem nem se darem conta da ousadia da fuga e comeram livres

um dos canteiros da beira mar. O cavalo preto decidiu pastar

no outro lado da pista. Atravessou. Ao ver que o carro se aproximava,

desconfiou, pela primeira vez, da função dos puxões no canto da boca.

Indeciso entre a esquerda e a direita, ficou ali.

A morte chegou num carro prateado.


Não houve arrependimento.

Seus últimos momentos foram de glória.

Sentiu a inclinação da ladeira do hospital sem

o trabalho do peso nas costas.

Mastigou com gosto a grama úmida da casa do Governador.

Foi manchete da TV ao meio dia e destaque do jornal da noite.

E antes que a polícia chegasse, os curiosos já haviam constatado:

o bicho de 350 kg estendido no acostamento era um cavalo.


Enfim, a morte tornou visível o cavalo que ninguém enxerga,

que se apaga perante a incômoda ideia de que o nosso conforto

produz tanto lixo, frente ao pensamento pungente de que alguém

sobrevive da nossa sujeira.

Quem dirige, vê a carroça; seu dono, vê o sustento.

Em meio a tantos jogos tecnológicos e mundos virtuais,

é provável que só as crianças notassem a presença do equino na rua e

cutucassem suas mães, impacientes com a lentidão do trânsito:

“um cavalo de verdade, mamãe”.


Mas ser adulto hoje é assim mesmo: a gente só enxerga

o cavalo depois que ele morre.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Prazer, Sarah

Era melhor quando tinha que responder só o nome, o endereço

e a data do nascimento.

Mas não é isso que pede o lado direito desta tela. Eu devo dizer

quem eu sou, e isso é muito complicado, porque só sei me descrever

de modo absurdamente desinteressante.

E sei porque treinei muito.

A minha prática em falar sobre mim mesma começou há

17 anos, no colégio. Primeiro dia de aula, todo mundo se olhando.

"Agora peço que vocês se apresentem por ordem de

chamada."- diz a professora.

Quando chega a minha vez, já estão querendo ir embora. Meu

nome começa com S e, quando dou sorte eu sou a penúltima.

Falo bem rápido: "Me chamo Sarah, sou de Forianópolis e tenho X anos."

Foi assim durante os 11 anos de escola, 2 e meio de cursinho e

quase 6 de faculdade.

Mas o maior problema é que fora da aula eu consigo ser ainda mais

chata: "Prazer.Sarah. Eu estudo Jornalismo..."

Ninguém estranha porque já está acostumado, mas, se for

prestar atenção, isso é mesmo tão importante?

Antes eu fazia Medicina, será que eu era outra?

Ou se morasse no Estreito, ou se tivesse nascido

em Outubro, qual seria a grande diferença?

Numa dessa, se dissesse "Prazer, Sarah. Eu sou horrível nos

esportes e não faço ginástica" ficasse mais especifico.

Pode ser que alguém pensasse duas vezes antes de me

convidar para correr na beiramar,

fazer trilha ou comer uma salada, por exemplo. E se eu começasse

com "Perco a chave de casa e o controle do portão umas três

vezes por dia. Pelo menos" ?

Minhas amigas achariam normal. Meu irmão mais velho ia

desconfiar: "Só três?" No caso de uma entrevista de trabalho,

eu seria imediatamente eliminada.

Existe ainda um perigo maior que o desemprego: a pergunta é

"quem eu sou" e eu só consigo responder "Como eu me vejo".

Assumo que meu ponto de vista é bem tendencioso.

Estou propensa a gostar de mim.

Rabisquei umas coisas no caderno hoje. Está desconectado por enquanto.

Como sou eu quem escrevo, pensei em deixar meus defeitos para o final.

Vou continuar amanhã. Corro o risco de acordar, achar horrível, e

começar tudo de novo.

"Quem eu sou" é muito amplo.

"Quem eu estou" já é difícil o suficiente.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Mochilas da Company

Houve uma época na minha vida em que tudo era uma mochila da

Company. Eu sonhava com aquela mochila. Me imaginava com

ela nas costas entrando no colégio. Eu a desejava tanto porque

todo mundo tinha. Ou melhor, todo mundo que era legal.


E por esse motivo é que não podia ser de outra marca. Não

tinha nada a ver com levar livros. Eu queria ser da moda,

e o COMPANY escrito na borda preta era pré-requisito.

Ninguém combinou, mas dava a impressão de que todos

partilhávamos dessa mesma idéia.


Assim, quem usasse COMPANY era supostamente "cool".

Quem não usasse, era totalmente "looser" . Sem ética nenhuma,

queria estar do melhor lado. Infernizei a minha mãe até que consegui.


Confesso que senti bem, mas durou pouco. Descobri que a

mochila não me deixava legal, mas igual. Mesmo assim,

depois vieram os tênis da Redley, as calças de neoprene

da Cantão, as blusinhas da Triton, os moletons do Hard Rock,

as cuequinhas Planet Hollywood. E as botas da Schutz, as

argolas de prata, as falsificações da Louis Vitton, a escova de

chocolate e todas as suas variações...


Comprei tudo, até que percebi que eu nunca ficava tão bonita

quanto eu queria ficar. Se eu comprasse a bolsa, ainda faltavam

o sapato, o cinto, a pulseira, o relógio. A felicidade da minha nova

aquisição era logo substituída por tudo que eu ainda precisava ter.

E cansei.


Não adianta eu querer parecer com alguém de revista. Elas ganham

para serem lindas, eu gasto um monte e não consigo.Claro que

continuo achando que as bolsas caras são melhores, mas não

vou pagar o preço de uma viagem por algo que serve para carregar

o celular, a carteira e as chaves. Só se tivesse dinheiro sobrando,

o que não é o caso.


Por razões econômicas e filosóficas, desisti de querer ser igual a

todo mundo. Daqui para frente, pretendo ficar cada vez mais

parecida comigo mesma. É original e sai muito mais barato.





Ontem eu achei um emprego. Hoje eu pedi demissão.

Ontem eu achei um emprego. Hoje eu pedi demissão. Vou explicar o motivo para que vocês se saiam melhor do que eu. Desemprego mata a aut...