sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Sobre o amor que não serve


Falava o nome dele com certo cuidado para não acordar os mortos. Nunca soava muito natural. Falava e logo olhava para si ligeiramente preocupada como quem tivesse mexido onde não devia. Ainda assim, de vez em quando o nome escapava, muito mais por saudade que por distração.

Na frente dos amigos era pior. Viu que com o passar do tempo o assunto tinha virado tabu. No momento em que se pronunciava, logo a mesa virava uma comissão julgadora com olhares de desaprovação. Fazia tempo que a banca tinha chegado ao veredicto de aquele amor não servia.

Ela simplesmente concordava, sem outras considerações. Não era uma forma de encerrar o assunto. Concordava sincera e convictamente, enquanto os amigos reforçavam o alerta. O que ninguém suspeitava é que ela já sabia disso desde o primeiro encontro. Desde o primeiro beijo, desde a primeira vez que se olharam na cama, a paixão veio honesta e sem nenhum senso de utilidade. Aquele amor nunca foi sobre ela e suas necessidades. O amor era sobre ele. Ele e seus interesses inusitados, seus segredos intrigantes, ele e todo o tumulto que o cercava.

Àquela história não se aplicava nenhum critério mais prático. Não era a metade, não era a luva e definitivamente a vida não ficaria mais fácil. Os amigos tinham razão: não servia. Só agora entendia as consequências e talvez fosse por isso que falava o nome dele com o receio de quem ajeita a prateleira mais alta na ponta do pé.

Um movimento em falso e poderia amá-lo novamente.


domingo, 3 de agosto de 2014

Calma.

São Paulo, quase dois anos depois. 


Cheguei na parte chata da mudança, aquela que vem depois que tudo já está encaixotado e espalham-se pelo quarto pequenos objetos sem classificação. Meias órfãs, o engov de depois, aquela capinha de guarda chuva novo que eu nunca mais vou conseguir colocar. 

Cercada desses vestígios pouco memoráveis, pacientemente vou separando o que vai e o que fica. Despejo a última gaveta em cima da cama é ali, entre tudo que deveria ser jogado fora, que eu encontro o tempo que eu passei aqui. Inesperadamente me deparo com um apego inexplicável a uma credencial de congresso, um convite de show, um folder que um dia eu achei que me seria útil.

Acho os endereços das minhas primeiras entrevistas de trabalho e paro para pensar em quantos amigos eu já fiz. Vejo os comprovantes de compra da padaria da esquina e lembro do tempo em que eu nunca tinha visto um pão na chapa. Cada nota fiscal vira um encontro. Um a um, analiso os papeizinhos amarelos de cartão de crédito, e percebo que, por cansaço ou distração, apaguei irresponsavelmente boa parte da minha memória. Porque, para cada vestido que se compra, quantos a gente prova? Para cada entrevista marcada, quantas vagas se pesquisa? Percebi que, na correria do dia a dia, a gente acaba esquecendo que qualquer movimento leva tempo. 

Enquanto a gente busca alguma razão mais importante, a vida se distrai com uma vitrine, marca um dentista, almoça, volta, escolhe um plano de internet. Acho que é preciso olhar para o passado com mais cuidado antes de cair no clichê e dizer que nunca dá tempo de nada. É preciso olhar pra nossa história com um pouco mais de paciência e entender que ainda não ter chegado onde se quer não significa que estamos no mesmo lugar. Não estamos. 

Fechei a última caixa, desocupei o quarto bem cansada e contente. Precisei de uma mudança pra ver o quanto eu tinha mudado.

Ontem eu achei um emprego. Hoje eu pedi demissão.

Ontem eu achei um emprego. Hoje eu pedi demissão. Vou explicar o motivo para que vocês se saiam melhor do que eu. Desemprego mata a aut...