domingo, 2 de agosto de 2009

Falta

Aconteceu há algum tempo, no interior do Rio Grande do Sul.

Acordou. Olhou-se. Desceu. Pão e queijo. Enquanto esperava a luz da sanduicheira acender, folheou o jornal que encontrou sobre a mesa. Não que que tivesse o hábito de ler os obtuários, mas um sobrenome conhecido chamou a atenção. A nota informava que Ana Cristina Siqueira dos Santos, 42 anos, descansava em paz depois de oito meses lutando contra o câncer. "Não, não. Não pode ser."

Esqueceu a sanduicheira ligada e foi acordar o marido.
-Amor, tu te lembras daquela minha amiga, morena, baixinha, que era minha vizinha quando a gente se conheceu?
-Uma que ria meio alto?
-Isso.
-Que que tem?
-Eu acho que ela morreu.
-Morreu?
-O nome está no jornal. "Ana Cristina Siqueira dos Santos". Foi câncer, parece. Tão nova...
- Que pena. Ela tinha filhos?
-Não sei. Faz uns quinze anos que a gente não se vê... A última vez foi no casamento da Marininha, irmã do Nelson, lembra?
-Lembro. Faz 15 anos já?
-Faz. Faz 15 anos. A gente ficou sem se falar 15 anos. E agora ela morreu. Minha amiguinha da escola, depois companheira dos cinemas, das festinhas. A melhor amiga que eu já tive e eu fiquei todos esses anos sem ligar no natal... Eu nem tenho o telefone dela....
-Calma amor, não fica assim. Vem aqui...calma, Clara... calma. Por que você não liga para a Marininha e descobre onde vai ser o velório?
-É. Eu vou no velório. E vou fazer a coroa de flores mais linda que alguém já viu. Passei a vida fazendo coroa pros morto dos outros...
-Isso amor. Não chora. Faz uma coroa bem linda e a gente leva lá pra ela. Hoje é terça, a gente fecha a floricultura, não tem problema.

Lavou o rosto. Desceu. A floricultura ficava no térreo. Abriu a geladeira. Pegou só o que estivesse lindo e novo. "Eu vou fazer bem vermelho, que é como ela gostava". Juntou as rosas, tirou os espinhos e foi montando tudo com pesar e saudade. Lembrou das vezes que saíram escondidas, de quando brigaram porque gostavam do mesmo menino, lembrou de como ela achava escandalosa aquela risada e não se conformou em perceber a falta só agora.
"Daqui a pouco a Aninha vai apodrecer como essas rosas", pensou ao jogar fora a caixa de flores velhas.

Quando a coroa ficou pronta, ligou para Marininha. Marina tinha se mudado para São Paulo havia sete anos e a última notícia que tinha era que a Ana Cristina estava morando em São Francisco. São Francisco ficava a uma hora e meia dali. O telefone ela não tinha.

Entraram na camionete e foram mesmo assim. Fizeram uma viagem silenciosa. Clara não sabia o que ia encontrar. O último enterro a que tinha ido tinha sido o da sua avó, mas era bem diferente. Morreu em casa, dormindo, velhinha. "Tomara que ela não tenha filho pequeno", pensava enquanto se distraia com os barulhos dos pedras da estrada.

Chegaram. Os números de metal pendurados no portão de madeira verde indicavam que estavam na casa certa. Buzinaram. Ninguém. Buzinaram de novo. Um homem veio atendê-los.
-É aqui que mora a Ana Cristina?
-Sim.
-Nós viemos trazer umas flores...
Antes que terminasse de explicar, Ana aparece na porta. Clara saiu correndo e abraçou a amiga. Um abraço forte, como se quisesse se certificar de que estava mesmo ali. Clara chorou de alívio, chorou pelos quinze anos que passaram longe, chorou de agradecida por poder mais uma vez abraçar a amiga quente, gorda, viva. "Eu achei que tu tivesse morrido, e eu te amo tanto, tanto...", soluçou. Ao entender, os olhos de Ana molharam também. Viu a coroa no carro, deu graças a Deus por estar ali e por ter a certeza de que era tão querida.

De fato, o nome era o mesmo, mas era outra pessoa. Refeita, Clara desculpou-se pelo incômodo." Eu teria feito o mesmo." Era verdade.

Ana insistiu que eles ficassem para um café. Sentaram, conversaram, riram como antes. Aquela tarde de terça, fadada a ser triste e sombria, milagrosamente se transformara na melhor tarde de terça dos últimos anos só porque as duas existiam. Trocaram telefones e prometeram se falar mais.

Clara voltou para casa contente, como se ela mesma tivesse nascido de novo. Na manhã seguinte e em todas as outras, sempre que abre a floricultura, ela se sente premiada por "só fazer coroa pros morto dos outros..."

Um comentário:

  1. que legal, sarah! um continho redondinho e gostoso! gostei muito. Principalmente das pausas Acordou. Olhou-se. Desceu.

    Um beijo bonita

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