domingo, 3 de agosto de 2014

Calma.

São Paulo, quase dois anos depois. 


Cheguei na parte chata da mudança, aquela que vem depois que tudo já está encaixotado e espalham-se pelo quarto pequenos objetos sem classificação. Meias órfãs, o engov de depois, aquela capinha de guarda chuva novo que eu nunca mais vou conseguir colocar. 

Cercada desses vestígios pouco memoráveis, pacientemente vou separando o que vai e o que fica. Despejo a última gaveta em cima da cama é ali, entre tudo que deveria ser jogado fora, que eu encontro o tempo que eu passei aqui. Inesperadamente me deparo com um apego inexplicável a uma credencial de congresso, um convite de show, um folder que um dia eu achei que me seria útil.

Acho os endereços das minhas primeiras entrevistas de trabalho e paro para pensar em quantos amigos eu já fiz. Vejo os comprovantes de compra da padaria da esquina e lembro do tempo em que eu nunca tinha visto um pão na chapa. Cada nota fiscal vira um encontro. Um a um, analiso os papeizinhos amarelos de cartão de crédito, e percebo que, por cansaço ou distração, apaguei irresponsavelmente boa parte da minha memória. Porque, para cada vestido que se compra, quantos a gente prova? Para cada entrevista marcada, quantas vagas se pesquisa? Percebi que, na correria do dia a dia, a gente acaba esquecendo que qualquer movimento leva tempo. 

Enquanto a gente busca alguma razão mais importante, a vida se distrai com uma vitrine, marca um dentista, almoça, volta, escolhe um plano de internet. Acho que é preciso olhar para o passado com mais cuidado antes de cair no clichê e dizer que nunca dá tempo de nada. É preciso olhar pra nossa história com um pouco mais de paciência e entender que ainda não ter chegado onde se quer não significa que estamos no mesmo lugar. Não estamos. 

Fechei a última caixa, desocupei o quarto bem cansada e contente. Precisei de uma mudança pra ver o quanto eu tinha mudado.

5 comentários:

  1. Parabéns pela lucidez... Mais um belo texto...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada mais uma vez : ) Por ler, por comentar, por acreditar em coisas parecidas. Não sei se faz sentido, mas quando eu penso alguma coisa que me acalma ou me perturba muito, dá vontade de contar.

      Excluir
  2. Almas gigantescas nunca chegam.Próximas do horizonte,dão um jeito de ampliar seus limites.
    Há uma frase que encerra o filme de John Milius,'O Vento e o Leão',que te soará emblemática.
    Identifique-se..."Voce é como o vento.E eu,como o leão.Voce forma tempestades;a areia fere
    meus olhos e a terra é ressecante.Eu rujo em desafio,mas voce não ouve.Entre nós,existe uma
    diferença:eu,como leão,devo permanecer em meu lugar,enquanto voce,como vento,jamais conhecerá
    o seu".

    ResponderExcluir
  3. Lindo o seu comentário. Vou guardar aqui. Esse vai para a série dos elogios incríveis que eu não sei se eu mereço. Muito obrigada pelo carinho, tá?
    um beijo grande,
    Sarah

    ResponderExcluir
  4. Tava com saudades dos seus textos! Texto massa que li no momento certo. Obrigado.

    ResponderExcluir

Ontem eu achei um emprego. Hoje eu pedi demissão.

Ontem eu achei um emprego. Hoje eu pedi demissão. Vou explicar o motivo para que vocês se saiam melhor do que eu. Desemprego mata a aut...